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O Direito e a Baby Reborn: Pensão, guarda-compartilhada e assistência médica

Cícero Beserra Mouteira

 

Confesso aos amigos leitores que iniciei meus estudos jurídicos no moribundo Código Civil de 1916 e ao final da faculdade tive que me atualizar ao Código Civil de 2002, na época ainda chamado de “Novo Código Civil”. Tanto em um códex quanto em outro, custei a aceitar a visão de que os animais, em especial os de estimação (“pets”) são mais que bens semoventes ou bens móveis, sendo verdadeiros seres sencientes como provavelmente já são tratados no Anteprojeto do “novíssimo” Código Civil vindouro.

Já não me surpreende o conceito de guarda compatilhada de cães e gatos, todavia essa semana não tive como não sair do limbo e voltar a escrever diante do espanto que foi o bombardeio de alunos me perguntando sobre as chamadas “baby reborn” e as inusitadas notícias sobre atendimento médico junto ao SUS e até mesmo guarda-compartilhada das bonecas hiper-realistas.

Se por um lado mulheres adultas querem pagar até R$ 12.000,00 (doze mil reais!) para fins de colecionismo ou até mesmo “voltar a brincar de mamãe”, não serei justamente eu (fã confesso de videogames retrô) que iriei atirar a primeira pedra. Contudo, a brincadeira perde a graça quando leio reportagens sobre pedidos de “guarda” da baby reborn, ou pior, levando as bonecas para “atendimento médico” fora dos estabelecimentos comerciais que simulam maternidades e outras práticas voltadas para essa pitoresca moda.

Como operador do Direito e professor universitário só me resta relembrar aos acadêmicos os primórdios do Direito Civil, em especial, os dois primeiros artigos do CC 2002 (LIVRO I DAS PESSOAS – TÍTULO I DAS PESSOAS NATURAIS – CAPÍTULO I):

Da Personalidade e da Capacidade

  Art. 1 o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

 Art. 2 o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Neste mesmíssimo sentido, destaco:

Pessoa é uma derivação do prefixo per e do verbo sonare, de onde personare significa “dizer fortemente”. Os atores do teatro romano, na antigüidade, usavam máscaras a fim de que a suas vozes pudessem soar mais fortemente. A máscara ou então a ser chamada de persona, denominação, mais tarde, atribuída ao indivíduo.

 Pessoa natural é o ente físico, o ser humano, o ente dotado de personalidade, ou seja, aquele que tem aptidão reconhecida pela ordem jurídica, para exercer direitos e contrair obrigações. É o que se extrai da dicção textual do artigo 1.º do Código Civil, in verbis: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Este é o ponto que merece ser destacado: ser sujeito de direito, ter personalidade, é atributo absolutamente necessário para que cada qual possa movimentar a máquina judiciária em defesa de seu direito subjetivo, valendo-se da norma jurídica, quando for preciso. Os escravos, por exemplo, apesar de serem pessoas naturais, não possuíam esse direito (direito subjetivo), porque não eram considerados pessoas; eram tratados como coisa (res). Atualmente, como não existem escravos, qualquer indivíduo, pouco importando o sexo, a idade, a raça, a religião ou a nacionalidade, tem a faculdade de exigir determinado comportamento das outras pessoas.

 Nos dias de hoje, pode-se afirmar que todo homem é sujeito de direito, ou seja, basta ter nascido com vida para ser titular de direitos: direito à vida, à herança, à propriedade… A Constituição Federal complementa: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, …” (art. 5º, caput).

 https://vlex.com.br/vid/da-pessoa-natural-399562442

Para a visão constitucional do STF, também seria pessoa, do ponto existencial, o nascituro (aquele ser humano em gestão – teoria conceptualista), porém para a natureza clássica e material do Direito Civil só é PESSOA o ser humano nascido vivo a partir de uma mulher, seja por parto normal ou cesariana (teoria natalista). Enfim, não há início de personalidade no Direito Brasileiro decorrente da simulação de “maternidade” ou do jocoso papel (que tudo aceita) constando “certidão de nascimento” da baby reborn.

Fugindo do óbvio, em tempos de debates de Inteligência Artificial, o que hoje é estranheza jurídica, amanhã poderá o ordenamento jurídico versar sobre direitos de androides autoconscientes, nos moldes das melhores histórias de ficção científica.

Enquanto não for nem pessoa nem sintozoide, a baby reborn segue com sua natureza jurídica de coisa (bem móvel) ível em caso de divórcio da partilha de bens conforme regime de casamento, sendo plenamente aplicáveis os conceitos e consequências de propriedade (art. 1.228, CC) e da posse (art. 1.196, CC), inclusive sendo estimulado o acordo entre as partes, contudo evitando a metáfora da “guarda compartilhada”.

Paralelamente, perdurando o estado atual da arte das ciências jurídicas, tanto em Minas Gerais quanto no Congresso Nacional já foram protocolados projetos de Lei com a previsão inclusive de multas (não obstante as sanções penais e istrativas), em especial, para os profissionais da saúde (pública ou privada), que desperdiçarem recursos já escassos em atendimentos e cuidados médicos em favor de objetos inanimados e carentes assim de personalidade jurídica.

Impossível não comentar sobre o Art. 196 da Constituição Federal que assegura que saúde é direito de todos e dever do Estado.

Evidente que tal interesse jurídico devidamente tutelado na Carta Magna não acolhe as bebês “reborn”, mas sim socorre para fins de tratamento mental e psicológico aquelas PESSOAS que se esquecem dos limites da brincadeira ou do colecionismo de bonecas.

 

NOTA DE REDAÇÃO: Cícero Beserra Mouteira é advogado, professor universitário e Assessor Jurídico da PMMG, sentido saudades de quando minha filha brincava de Barbie, Polly e até Baby Alive (que eu já considerava bem caro na época aliás). Aliás, parabéns Letícia por mais um ano de vida! Que Deus ilumine seus caminhos sempre!

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