Foto de Dores do Paraibuna (fonte: blog “Deia na Rede”)
por Fernando Neto
Esse conto foi livremente inspirado no distrito de Dores do Paraibuna, em Santos Dumont, que foi inundado para a construção da Represa de Chapéu D’Uvas. Antes da emancipação de Santos Dumont, o distrito fazia parte do município de Barbacena.
Quando o Personagem ainda era criança, era possível andar pelas ruas da Vila-que-Era sem molhar os pés, salvo nas manhãs de geada. Naquele tempo a vila ainda não tinha esse nome, pois vivia submersa em um presente eterno. No tempo de sua meninice, o Personagem vivia sem preocupações, sem saber que cada minuto, ainda que o mais insignificante, iria se transformar em preciosas memórias. Ele esculpia lembranças sem se dar conta, e talvez por isso foram tão duradouras. Mas, desde que a vila se transformou em Vila-que-Era, algo se desatou em sua vida para sempre. Como um fim seguido por uma continuação, mas uma continuação que não se conectava com o estilo inicial. Como se sua vida, desde então, não fosse mais que um enredo chato com algumas poucas, raras frases bonitas aqui e ali. Como se ele fosse um Personagem perdido, vagando eternamente à procura de uma história para viver.
Anos e anos se aram e o Personagem viu-se transfigurar em frente ao espelho. Gostava de imaginar ados diferentes. Não em relação aos seus primeiros anos, pois esses foram perfeitos, ainda que imperfeitos, na Vila-que-Era. Gostava de alterar seus outros ados, aqueles a partir do momento em que as coisas começaram a ir por caminhos indesejados. Quando a vida se acelerou por destinos não planejados, e foi-lhe impossível segurar o tropel de fera dos acontecimentos sucessivos. A força (que ele nunca descobriu de onde vinha) que o empurrava para o abismo, sem chance de hesitação. O cavalo indomável do destino. Por isso fantasiava. Fantasiava tanto que às vezes nem sabia qual dos muitos ados pensados era o verdadeiro. Sentia saudades de coisas que não tinham existido; perdia-se em uma infinidade de personalidades. Em todo caso, não se importava com a veracidade. O Personagem acreditava que, entre os ados reais e os inventados, estes eram mais verdadeiramente seus, uma vez que foram criações suas e não das circunstâncias da vida.
Assim, sua infância na Vila-que-Era afigurava-se para ele como a melhor fase de sua vida, apesar do rigor dos pais, da palavra sempre profética à hora do jantar, que pregava que a vida era dura, um vale de lágrimas, um caminho estreito, uma subida íngreme. O longo tempo que o separava daquela época apagava suas imperfeições, causava uma ilusão de ótica, maquiava as dores. Seu ado perfeito, ainda que imperfeito, mostrava-se ao Personagem como a potência pura, a virtualidade total, a semente, não maculada por ações que, ainda que boas, poderiam ser melhores. Melhor é não agir, pensava o Personagem, tarde demais, pois na ausência da ação está o infinito.
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Mesmo após tantos e tantos anos, o Personagem guardava algumas fotografias de como era então a Vila-que-Era. Sob uma eterna película de poeira, guardada em uma gaveta, erguia-se a casa de sua infância, ampla, arejada, com as janelas sempre abertas para as grandes árvores do quintal e as cortinas balançando com o vento. Da gaveta se descortinava a rua principal do povoado, com seus ladrilhos, lampiões, janelas e portas, a ponte de pedra do século ado, e o riacho de águas calmas. A escola em dia de festa junina. Ele criança na frente da igreja. A procissão na época da festa da paróquia. Tudo estava ali guardado. Bastava ao Personagem abrir a gaveta para sentir uma lufada de ar mais cômodo, uma luz de coloração sépia invadir o ambiente. Ali estavam os últimos registros da Vila-que-Era ainda seca, embora vez por outra molhados por furtivas lágrimas de saudade. Como se não apenas a Vila-que-Era, mas também ele estivesse sendo inundado por dentro.
Essas fotos lembravam-lhe sempre do naufrágio que vivenciara. Diziam que iam construir uma grande represa para levar o progresso para as cidades da região. Certo dia, igual a todos os outros, a água foi subindo aos poucos, como um dilúvio de céu claro, sem nuvens. Escorria não se sabia de onde, em um fluxo lento, contínuo, tomando primeiro as partes mais baixas da vila e, em seguida, ocupando também os espaços mais elevados. Aquela fora a primeira vez que chovera pelos lados. O sítio onde nascera teve destino desigual: a casa de sua infância, localizada em um vale perto do riacho, foi totalmente tomada pelo dilúvio, ao o que as colinas permaneceram para fora, como uma barcaça meio naufragada. A água, que começou a encher o mundo de sua infância em ritmo lento, logo se apressou, e foi preciso fugir com o que dava para carregar em magros braços para salvar ao menos um vestígio do ado.
Acontecia com o Personagem o que acontece com todos os obcecados pelo ado; com esses maníacos que tentam reconstituir o que se foi com os poucos cacos de memórias sobreviventes. Tentava reconstituir um quebra-cabeça com peças sem encaixe, com peças informes, que mudavam seus ângulos a cada nova evocação. Como acontece com as folhas secas de árvore em um jardim, o vento espalhava seus indícios de ado tão logo os havia reunido em um todo mais ou menos coerente. A brisa ondulava os acontecimentos de seu ado como fazia com as cortinas da casa de sua infância; retirava a estrutura de suas lembranças, seus alicerces, seus ossos, a engenharia que as tornava reais. Outras lembranças, que tinham aprendido os feitiços da água, se tornavam mais fugazes quanto mais tentava capturá-las com sua rede de pescador esgarçado.
Certo dia, não mais satisfeito com a imaterialidade dos sonhos, o Personagem resolveu partir para a longa jornada rumo ao seu ado. “Mas você não sabe que nada mais lá existe?”, tentavam demover-lhe os planos. “Está ficando velho com essa obsessão pelo ado”. Nem umas nem outras palavras foram capazes de alterar sua decisão. Fez sua mala, comprou uma agem e foi de volta para o local de onde havia saído carregando apenas a mala de lembranças. Foi atrás desse seu outro eu, dessa outra ponta da meada, dessa época que parecia irradiar o sentido de sua vida. Foi atrás de sua história, que se perdera nos descaminhos da vida. Desculpemos o Personagem por sua inocência. Ele não sabia ainda que voltar à sua terra, há muito não vista, não é matar a saudade: é ampliá-la. É constatar na materialidade do presente que o ado não mais existe, e que a terra em que se vivia se transfigurou com o longo e esmagador ar do tempo. Voltar à terra natal é constatar o eterno exílio, é perceber, atônito, que o lugar onde estão nossas raízes já não existe mais.
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Chegou. Desceu do ônibus na estrada de terra, com sua mala, olhando para os lados com olhos que se perdiam. O ônibus partiu novamente, deixando o único ageiro desembarcado no lugar que já havia sido, mas não era mais. Começou a caminhar, sem rumo. Era guiado pelo chamado das águas. As rodinhas da mala não funcionavam entre os pedregulhos da ingrata estrada. Trouxera aquela mala apenas para que o peso físico o fizesse esquecer do outro peso, o que arrastava dentro de si. Andou, andou e parou sem dizer palavra. O lago se espalhava à sua frente, enorme, calmo, tranquilo, tão manso que parecia ser possível caminhar sobre as águas. Mas o Personagem não se deixava enganar: sabia que estava de frente para o abismo. A inundação não acabou quando a água deixou de subir, o Personagem descobriu naquele momento; o próprio lago, ainda que imóvel, era um eterno transbordamento.
De repente, quebrando o encantamento, o Personagem ouviu o som de um motor. Um barquinho atracou em um pequeno píer. Um velho Canoeiro desceu da embarcação e pôs-se a caminhar. Quando viu o Personagem, parou, olhou um pouco, desconfiado com o inesperado forasteiro. Ninguém aparecia por ali desde que a Vila-que-Era deixou de ser. Depois de um tempo, o Canoeiro veio na direção do Personagem. Queria saber o que aquele estranho fazia por ali, naquele lugar fora de todo trajeto. O Personagem lhe explicou que aquele não era seu trajeto, aquele era seu lugar de destino. Na verdade não: seu ponto final era um pouco para lá, em um ponto específico do lago. Se o Canoeiro podia lhe levar até lá, perguntou. Depois de um breve momento de hesitação, o Canoeiro aceitou.
Quando o Personagem subiu no barco teve uma vertigem. A sensação de ter entrado em outro mundo, ditado não pela imobilidade, mas pela infinita fluidez das águas, o assustou. Ali a vida não estava pautada pela inexorabilidade da terra firme; tudo era contingente e possivelmente mutável. Na água, o Personagem pensou, a vida perde seus andaimes, seus arrimos, e tudo pode ser outra coisa. A Vila-que-Era poderia vir a ser, se tornar uma Vila-que-Será? A Vida-que-Era poderia, por fim, se tornar uma Vida-que-Será? As coisas poderiam voltar a acontecer do jeito que eram, um eterno retorno, assim como as ondas concêntricas do lago? O ruído do motor do barco rompeu o silêncio com violência e, logo em seguida, começaram a navegar.
O Personagem guiava o Canoeiro. Não sabia ao certo o que fazia com que ele tivesse certeza do ponto onde queria chegar, que instinto, que sexto sentido, que percepção infinitamente sensível para o mundo das águas e dos ados engolidos, mas o fato era que ele sabia. Dentro de si a certeza gritava; a bússola da lembrança acenava para o único norte de sua vida. O Canoeiro guiou o barco seguindo as monossilábicas direções do Personagem, até que este pediu para parar, sem uma palavra, apenas um breve gesto. Como se o pronunciar de uma palavra pudesse destruir o castelo de silêncio onde ele embalava suas frágeis lembranças. O Personagem chegara ao seu destino, que era, ao mesmo tempo, seu ponto de partida.
-Você também morava na Vila-que-Era? – o Canoeiro perguntou, hesitante. Aquele Personagem desconhecido, excêntrico, que parecia ter saído de um mundo antigo e distante, o assustava. Ele se arrependeu de falar logo após fazer a pergunta, como se entre eles tivesse sido firmado um trato silencioso de não falar. Nunca.
O Personagem permaneceu um tempo em silêncio, olhando as mansas águas, levemente onduladas. Olhava fixamente para elas na tentativa de alcançar o seu fundo, mas só via a imensidão do céu refletida em seu espelho. Apesar de tudo, pensou o Personagem, por mais duro que tenha sido, tudo o que conseguimos ver de nosso ado é o céu. Por fim o Personagem respondeu: que havia nascido e ado toda a sua infância na Vila-que-Era, mais precisamente ali naquele ponto onde estavam, uns poucos metros abaixo, debaixo das turvas águas do lago. Águas turvas, o Personagem pensou, tão turvas como lágrimas.
Como estaria a velha casa de sua infância? As paredes estavam cobertas de algas, como a hera nos castelos góticos? Estaria em ruínas, servindo de abrigo para os peixes? Ou havia sido totalmente destruída com a força da inundação? Sobraria algo material de seu ado, uma parede, ainda que incompleta, um vergalhão, ainda que enferrujado, um pedregulho, ainda que coberto de lodo? Ou tudo havia virado comida dos anos? Tudo estava conservado na memória; mas que aproveita ao homem salvar toda a sua alma se perder o seu mundo? O Personagem olhou para o canoeiro, que o observava. Como para responder uma pergunta não proferida, o Personagem disse, sem saber como: -Eu sei que é aqui – e o verbo no presente lhe soou falso, como uma nota errada em um piano.
O Canoeiro aproveitou a quebra do silêncio para abrir as comportas de sua fala, caudalosa, ainda que sucinta:
-Diziam que a água viria devagar, subindo aos poucos, mansa como a brisa de abril – o canoeiro silenciou, vendo a brisa balançar mansamente a superfície da água. -Mas não foi assim. A água começou devagarinho, com vergonha, mas logo subiu de forma desmedida, cobrindo o mundo todo. A gente não teve tempo de tirar nada, fugimos apenas com nossas lembranças – silenciou mais uma vez. Depois, continuou falando. Disse que pelas beiras do lago ainda moravam muitos dos antigos moradores, aqueles que não conseguiram se afastar demais de seu espaço. Aqueles que estavam presos por uma força mais forte que o desejo de construir uma outra vida, em outro lugar. Ele, o canoeiro, era um desses. Não conseguira se afastar. O peso de suas memórias era grande demais para carregar para muito longe com seus braços franzinos. Enquanto a maioria preferiu procurar outras terras, se instalar na nova Vila-que-Seria construída para os que perderam suas casas, os mais velhos preferiram ficar junto de suas lembranças, suas lembranças mortas, afogadas.
-Dizem que quem bebe desta água jamais terá sede de seu ado – concluiu o canoeiro, silenciando de vez.
O Canoeiro não disse mais nada, pois estava tão acostumado a viver solitário que perdera a facilidade com as palavras; sua linguagem era o som do motor do barco e a suave voz do vento e da água. O Canoeiro não disse nada, portanto, mas poderia ter dito: eu não saí daqui porque esse é meu terroir, meu habitat, meu substrato, a terra onde eu caibo como uma luva. Poderia ter dito: da mesma forma que há árvores cujas raízes aprendem a viver dentro da água, meu ofício de canoeiro sobre o lago é minha forma de caminhar, ainda, pela Vila-que-Era, minha forma particular de ignorar as circunstâncias indesejáveis e de continuar, com a teimosia dos velhos, vivendo da mesma forma e no mesmo lugar. Poderia ter dito, ainda: eu sobreviveria em outra terra, certamente, mas só como uma flor exótica que é levada para um país distante e floresce ainda uma vez, mas não com o viço e o aroma de antes. Poderia ter dito, mas não disse nada. O silêncio caía sobre eles como um véu, uma mortalha, uma superfície aquosa.
O Personagem manteve o silêncio, não queria dissipar os sinais que recebia. Mas ele poderia, se ousasse, ter dito: sem a terra onde nasci, perdi a minha história, é a terra quem nos conta, ela é a narradora onisciente desse longo romance que é a nossa vida. Poderia, se ousasse, ter dito também: sou um eterno filho pródigo impossibilitado de voltar, pois o local da volta não mais existe. Se ousasse, poderia ainda ter dito: queria ser um escafandrista para mergulhar nessas águas e ver, como quem faz a exumação de um cadáver, o esqueleto putrefato da humilde casa onde nasci, com suas janelas e portas de madeira, com flores plantadas em potes de manteiga enfileirados na janela, com canequinhas esmaltadas penduradas em pregos em uma das paredes da cozinha. Mas o Personagem não disse nada, pois seu silêncio dizia tudo isso e muito mais.
Permaneceram os dois dentro do barco, ainda por um tempo. Imersos no silêncio, poderiam se dizer muitas coisas, mas não disseram. Mantiveram o silêncio, através do qual, de uma certa maneira, se comunicavam, seja por um olhar furtivo, por um suspiro mais profundo, por um gesto contido. Nos porões, nos subsolos do silêncio, suas vozes se comunicavam e se compreendiam. O que partira e o que ficara se encontravam finalmente, frente a frente, e não precisavam dizer palavras para se compreenderem. Sabiam que quem partira de verdade fora a terra, ela que arrumara suas malas, seus pertences, e sumira da superfície do mundo. Fora ela quem partira de vez, sepultada por essa tumba de água que negava a mais sutil visão do que havia sido. Agora, os dois precisavam aprender a viver em uma terra extinta.
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Anoitecia. Para o lado do poente, as árvores sobre o morro eram apenas riscos pretos contra o céu pálido, como uma xilogravura em um cordel. As águas escureceram, mas ainda exalavam um certo brilho. O brilho dos olhos do Personagem apagara mais cedo. Juntos, rumaram com o barquinho para a margem, atracaram no píer. O Canoeiro convidou o Personagem para a sua casa, tomar um café forte, ver a noite terminar de cair. O Personagem recusou, gostaria de ir embora ainda naquela noite.
O Personagem voltou com sua mala agarrando nas pedras do caminho. Esperou o ônibus, que chegou em uma nuvem de fumaça, entrou e sentou em um dos bancos. Pela janela, contemplava o tempo ando. Foi então que decidiu encobrir o grande buraco em sua vida com a reconstituição de seu ado. A única forma de materializar as lembranças era escrever, traçar sobre o papel o esqueleto das palavras, que poderia, sempre que quisesse, revestir com a carne e a pele dos sons. É isso, pensava o Personagem: recriaria pelas palavras cada rachadura da antiga casa de sua infância, cada madeira solta de seu assoalho, cada folha das mangueiras do quintal. Acumularia palavras como quem coleciona objetos antigos, como quem escava a terra em busca de antigas civilizações. Escreveria em um papel de alta gramatura, em letras garrafais, enormes, para usar o máximo de páginas possível. Escreveria mil páginas, dez mil se fosse possível; encheria um quarto só com seus papeis. Queria que seu ado fosse grande, interminável, infinito. Queria escrever coisas iluminadas, mas carregava um dia chuvoso dentro de seu peito. Não escreveria em primeira pessoa, e sim em terceira, pois a impessoalidade daria a impressão de que outra pessoa compartilhava seus segredos.
Chegou em casa. Largou a mala na porta e correu para sua mesa de trabalho. Pegou o primeiro papel que encontrou e, com a caneta na mão, grafou as primeiras das intermináveis palavras: “Quando o Personagem ainda era criança, era possível andar pelas ruas da Vila-que-Era sem molhar os pés, salvo nas manhãs de geada”. Parou, contemplou sua criação, viu que tudo era bom e continuou.